Quem tem boca vai à Roma...

Quem tem boca vai à Roma...

28 de abril de 2022

A coluna da Bicca aborda de maneira leve e descontraída temas relevantes sobre ciência e saúde. Seus personagens e seus questionamentos abrem portas para explicações e reflexões descomplicadas.

Número 14 - Quem tem boca vai à Roma...


- Ô mãaaaaae, vamos dormir gostosinho? Meu olhinho está quase fechando...
- Sim Lins, vamos, mas antes pegue a sua irmã e vão os dois escovar os dentes.
Diz Rebeca tranquilamente, numa tonalidade de voz de quem já ensinou as crianças a fazerem o certo.
- Ah, mãe, eu tô com uma preguiça de escovar os dentes.
- Eu sei meu filho, as vezes a gente está cansado, mas sabe quem não descanca nunca?

- Quem mãe?!
- Os bichinhos na nossa boca, meu filho. Eles estão aí louquinhos para aglomerar e fazer a maior festa nos seus dentes, você vai deixar?
- Que bichinhos são esses ?!?, mas é só 1 noitezinha mãe ...
- Esses bichinhos são as bactérias, meu filho. Então tá, são apenas 8 horas, uma noitezinha, a multiplicação de uma bactéria acontece entre 30 min e 1h, dependendo da bactéria. Isso quer dizer que, nessa noitezinha, as bactérias podem se multiplicar até 16 vezes. E lembre-se, cada vez elas se dividem em duas. Se você tem 2 bactérias na sua boca, na primeira divisão terá 4, na segunda 8, na terceira 16...e por aí vai, tipo um esquema pirâmide; pensa quantas bactérias no final. Meu filho, você tem muito mais que 2 bactérias aí... você vai mesmo deixar elas fazerem o que quiserem na sua boca?
- É mãe, não dá mesmo pra concorrer com as bactérias...e nem com a tua sabedoria.

Rebeca deixa acontecer aquela sorrisinho de canto de boca.
- Liceeeeee! Vamos escovar os dentes. Vamos logo acabar com essa festa das bactérias, tá na hora de todo mundo ir pra cama. 

Já que começamos o ano falando de tubo digestivo e de bactérias, é quase que impossível não falar da nossa boca, onde tudo começa! Sim, você já entendeu que as bactérias do intestino podem ditar como a orquestra toca no resto do seu corpo. As bactérias são importantíssimas, inclusive as da sua boca. A nossa boca é o ambiente perfeito para as bactérias fazerem o estrago que quiserem. É úmida, é cheia de cantinhos escondidos, pode guardar restos de alimentos, é a porta de entrada para o resto do tubo, é quentinha. Fala sério! Perfeita, sem defeitos!
Quem tem boca vai à Roma diz o ditado, mas na verdade deveria ser, quem tem boca vai ao dentista! Faz quanto tempo que você não vai ao dentista? Sinceramente. Assim como precisamos de limpeza e higiene constante nas outras partes do corpo, também precisamos de limpeza e higiene constante na nossa boca, e isso inclui nossos dentes e a nossa língua. Ir ao dentista é um evento negligenciado, porque não parece de suma importância, ou seja, a gente tende a deixar para depois, porque não é uma “parada urgente”. Acontece que, a situação calamitosa que a gente vive em outros quesitos da nossa vida podem estar ligadas ao fato de que ignoramos o que se passa na nossa boquinha.
Sabe aquela camada amarelada que se cria entre os dentes? Aquela que parece uma moldura ao redor dos dentes, especialmente nos dentes da frente, na parte de baixo da nossa arcada dentária? Aquilo se chama placa bacteriana. Meus queridos, é um ninho de bactéria e conteúdo inflamatório na boca de vocês. É onde as ‘bonitas’ se concentram e causam uma inflamação que a gente não deseja para ninguém. Essa placa pode e deve ser removida com o uso diário do fio dental e escovação dos dentes, de maneira eficiente (logo já falo mais sobre o que exatamente ‘eficiente’ quer dizer). Quando essa placa bacteriana não é removida pelos nossos cuidados diários ela pode calcificar.
Maíra, calcificar? Como assim? A nossa saliva, dentre outras coisas, como enzimas, proteínas e água, é rica em sais mineiras. Esses sais reagem com as placas bacterianas impulsionados pela umidade e acidez da saliva (sim o pH da boca também é importantíssimo) e formam uma camada dura, como se fosse uma pedra, ou seja, uma calcificação. Entendeu? Aquela placa bacteriana agora está grudada, fixada, incrustrada, petrificada no seu dente. Nesse caso, só o dentista com aparelhos específicos vai conseguir remover esse rochedo que você deixou ser cultivado aí na sua boca.
É como eu havia comentado, pode parecer uma coisa muito boba, mas a inflamação crônica nos dentes e nas gengivas não causa somente cáries (que é provavelmente o motivo principal pelo qual o sujeito procura o dentista); pode causar pequenas rachaduras na maxila (os ossos da boca que sustentam os dentes); podem causar infiltração de células inflamatórias no tecido bucal e da face causando pressão, dor, desconforto; podem arruinar completamente o dente levando a uma extração, entre outras muitas possibilidades de doença. O fato é que, muita gente ignora o que se passa na boca, mas a falta de dentes, o desalinhamento de dentes, a inflamação nos dentes, a saliva ácida demais, a presença de herpes, tudo isso pode influenciar e muito nas dores de cabeça, enxaqueca, sinusite, mau hálito, paladar alterado, alergias e irritações, e muitos outros problemas que afetam de maneira potente o resto do nosso corpo todo, o nosso sono, e claro, o nosso dia-a-dia. Lembrem-se meus fiéis leitores, está tudo conectado. A boca conversa com o estômago, que conversa com o intestino, que conversa com o cérebro, que conversa com todo o resto. Tá quase um poema de Carlos Drummond de Andrade.
Vamos aos fatos, a escovação dental precisa ser feita com uma escova de cabeça pequena (que alcance todos os cantos estreitos da boca) e de cerdas macias (você quer limpar a sujeira do dente e não arrancar a proteção que ele tem). Não adianta nada escovar com força por 30 segundos. A escovação precisa ser constante e por pelo menos 2 minutos e meio, o ideal seria 3 minutos. AHHAHAHAHHAHHA. Eu estou rindo alto! Sabe quando foi a última vez que a maioria das pessoas escovou os dentes por 3 minutos? Na vida passada, só se for. Nessa correria que a gente vive? Você acha que demora muito escovando os dentes, mas se você for cronometrar eu posso te garantir, não vai dar nem 1 minuto. Faça o teste. Para te ajudar, escolha uma música que goste e escove os dentes enquanto a música toca. A maioria das músicas tem em média 2 -3 minutos. Escove todos os cantos dos dentes, dentro, fora, atrás, na frente. Escove a língua e se quiser ser muito mais eficiente utilize um raspador. Depois dessa dica, só falta o rei da limpeza: o ignorado, o esquecido, o julgado, sim, o fio dental. Ah, minha gengiva sangra! Porque você não está passando o fio dental todo dia. É igual ir na academia, se você parar de ir, quando começar de novo, os músculos todos vão doer, até o corpo se acostumar. Você começa a passar o fio dental, a gengiva não está acostumada com aquela pressão e movimento, vai reclamar inicialmente, mas, com o uso diário, vai ficar DIVA. A escova sozinha não limpa entre os dentes e ali é o lugar perfeito para as bactérias se esconderem. A receita está dada: fio dental uma vez ao dia (ao menos), escovação 3 vezes ao dia (do jeitinho que eu expliquei ali em cima; sendo a escovação noturna a mais importante de todas), limpar a língua, e ir ao dentista no mínimo uma vez ao ano para uma limpeza mais profunda. Se você é preocupado e antenado como eu, a cada seis meses, ou seja, 2 vezes ao ano. Não tem segredo e não vai acontecer um milagre. 
Eu não aprendi isso tudo sozinha, meus dentistas ao longo da vida me ensinaram, e muito. E eu continuo aprendendo. A saúde da boca é sim parte essencial para a saúde do corpo. O sorriso bonito e saudável causa uma ótima primeira impressão e não estar 'baforento' ajuda e muito na conexão com as pessoas. Aproveite os prazeres de dar uma gargalhada gostosa, de boca muito aberta (minhas preferidas)!
A boca é a porta de entrada do nosso sistema digestivo, é o nosso cartão de visita, é a parte no nosso corpo que nos permite comunicar e amar. Muitos sorrisos e beijos para todos os leitores. Não seja aquela pessoa, que se bobear, pode ir com mais frequência à Roma do que ao dentista.

Maíra Assunção Bicca
Maíra Assunção Bicca

Farmacologista e Neurocientista
Pós-doutorado em Imunofarmacologia (UFSC - 2016) e em Neurobiologia (Northwestern University - 2017-2019)
Research Fellow no Neurosurgery Pain Research Institute - Departamento de Neurocirurgia e Neurociência da Johns Hopkins School of Medicine.

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